A tradição da veneração e da meditação da Via-sacra, desenvolveu-se e consagrou-se com a piedade cristã
Dom Estêvão Bettencourt, OSBM, da revista ‘Pergunte e Responderemos’,
de número 26, de fevereiro de 1960, fala-nos sobre a tradição do
valoroso exercício de piedade que é a Via-sacra.
Segundo o bispo, a Via-sacra é um exercício de piedade, no qual os
fiéis percorrem mentalmente o caminho de Jesus Cristo, do Pretório de
Pilatos até o monte Calvário. Esse exercício muito antigo, que remonta
os primeiros séculos da Igreja Católica, tomou forma com o tempo, até a
Via-sacra, como conhecemos em nossos dias.
Desde os primórdios, os fiéis veneravam os lugares santos, onde
viveu, morreu e foi glorificado Jesus Cristo. Peregrinos de países mais
longínquos iam à Palestina para orar nesses lugares. Em consequência
dessas peregrinações, surgiram narrativas, das quais as mais importantes
da antiguidade são a de Etéria e a do peregrino de Bordéus, que datam
do século IV. Muitos desses peregrinos reproduziam, em pinturas ou
esculturas, os lugares sagrados que visitaram.
Lugares Santos
A tendência de reproduzir os lugares santos aumentou por causa das
Cruzadas (século XI-XIII), a qual proporcionou a muitos fiéis a
oportunidade de conhecer os lugares santos e de se beneficiar da
espiritualidade desses locais. Por isso, aumentaram as capelas e
monumentos que lembram os santuários da Terra Santa. Essas capelas e
monumentos passaram a ser visitados por pessoas que não podiam viajar
para a Cidade Santa.
Até o século XII, os guias e roteiros que orientavam a visita dos
peregrinos à Palestina não tratavam de modo especial os lugares santos
que diziam respeito à Paixão de Cristo. Em 1187, apareceu o primeiro
itinerário que seguia o caminho percorrido por Jesus. Porém, somente no
fim do século XIII, os fiéis passaram a separar a Via dolorosa do Senhor
em etapas ou estações. Cada uma dessas era dedicada a um fato do
caminho da cruz de Cristo e acompanhada por uma oração especial. Por
causa da limitação dos maometanos, os cristãos passaram a ter um
programa para a visita desses lugares santos, relacionados à Paixão de
Cristo.
Via crucis
No fim do século XIV, já havia um roteiro comum, que percorria, em
sentido inverso, a Via crucis. Este começava na Igreja do Santo
Sepulcro, no Monte Calvário, e terminava no Monte das Oliveiras. As
estações desse caminho eram bem diferentes da via atual. Alguns autores
do fim do século XV, como Félix Fabri, afirmavam que esse itinerário –
do Calvário ao Monte das Oliveiras – era o mesmo que a Virgem Maria
costumava percorrer, recordando a Paixão de seu amado Filho Jesus
Cristo.
Os peregrinos que visitavam a Terra Santa, no fim da Idade Média,
testemunhavam um extraordinário fervor, pois arriscavam suas vidas na
viagem e se submetiam às humilhações e dificuldades impostas pelos
muçulmanos ocupantes da Palestina. Tal fervor fez com que muitos
cristãos, que não podiam ir à Terra Santa, desejassem trocar a
peregrinação pelo exercício de piedade realizado nas igrejas e
mosteiros. Esse desejo fez com que fosse desenvolvido o exercício do
caminho da Cruz de Jesus Cristo.
O fervor levou os fiéis a percorrerem o caminho doloroso do Senhor
Jesus na ordem dos episódios da história da Paixão de Cristo. A
narrativa da peregrinação do sacerdote inglês Richard Torkington, em
1517, mostra que, no início do século XVI, já se seguia a Via dolorosa
do Senhor na ordem dos acontecimentos. Isso possibilitava aos fiéis
reviver mais intensa e fervorosamente as etapas dolorosas da Paixão. No
Ocidente, as pinturas ou esculturas das estações da Via-sacra eram
variadas. Algumas delas tinham apenas sete ou oito estações. Outras
contavam com 19, 25 ou até 37 estações na Via dolorosa de Cristo. Em
1563, o livro “A peregrinação espiritual”, de Jan Pascha, descreve uma
viagem espiritual que deveria durar um ano, num roteiro que partia de
Lovaina para a Terra Santa.
Como surgiram as 14 estações
Cada dia dessa peregrinação era acompanhada de um tema de meditação e
exercícios de piedade. Em 1584, Adrichomius retomou o itinerário
espiritual de Jan Pascha e lhe deu a forma que tem a Via-sacra como a
conhecemos hoje, ou seja, o caminho da cruz de Cristo acontece a partir
do pretório de Pilatos, onde Jesus foi condenado à morte, num total de
14 estações, até o Calvário, onde morre o Crucificado.
Os franciscanos tiveram um papel importante na propagação do
exercício da Via-sacra. Desde o século XIV, estes são os guardas
oficiais dos lugares santos da Terra Santa e, talvez por isso,
dedicaram-se à propagação da veneração da Via-sacra em suas igrejas e
conventos. Desde o fim da Idade Média, os franciscanos erguiam estações
da Via-sacra, segundo o roteiro de Jan Pascha e Adrichomius. Isso fez
com que essa forma prevalecesse sobre as outras formas de devoção da Via
dolorosa de Cristo. Foram também os franciscanos que obtiveram dos
Papas a concessão de indulgências ao exercício da Via-Sacra. Dentre os
filhos de São Francisco, destaca-se São Leonardo de Porto Maurício, que
ergueu 572 “Vias-sacras” de 1731 a 1751.
Assim, o exercício da Via crucis desenvolveu-se ao longo dos séculos
até atingir sua forma atual, a partir da obra de Pascha e Adrichomius no
século XVI. A aprovação da Santa Sé e a concessão de indulgências
mostram que a veneração e a meditação da Via dolorosa de Cristo fazem
muito bem para a piedade cristã, especialmente no tempo da Quaresma. Por
isso, desfrutemos dos benefícios da Paixão de Cristo como são propostos
pela Via-sacra, piedade que santifica os fiéis cristãos a tantos
séculos.
Natalino UedaNatalino Ueda é brasileiro, católico, formado em Filosofia e Teologia. É o autor do blog Todo de Maria, que tem como temas principais a devoção mariana e a consagração a Nossa Senhora segundo o método de São Luís Maria Grignion de Montfort
Fonte - https://formacao.cancaonova.com/author/natalinoueda/
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